quinta-feira, 11 de setembro de 2008

História 3: "Desculpe. Não vi que está grávida"

A primeira vez:
Não o encontro!
Mas onde raio se meteu?
Mas... que...????
Ah, cá está ele. Os passes deviam ter uma espécie de mini GPS incorporado. Vendo bem, por mim tinham os passes, as chaves de casa, o telemóvel. Nunca encontro nada na mala. Talvez nem encontrasse o próprio GPS.
Mas finalmente lá entrei no autocarro. Entre tombos e mãos ora nos bancos, ora nos varões lá me vou aconchegado. Talvez me possa sentar alí, ou talvez lá ao fundo. Não. Aqui à frente seria melhor.
Boa. Vai sair aquele senhor.
Menina, sente-se aqui!
Mas vai sair?
Não, mas sente-se, sente-se.
Mas eu posso ir de pé.
Não. Claro que não. Ainda por cima grávida!

GRÁVIDA???
EU???

A segunda vez:
Adoro estes dias.
O chiado apinhado de gente, não está calor nem frio, tenho todo o tempo do mundo para andar às compras. Sozinha.
Compro um perfume ali, uns sapatos acolá e paro para beber um café e apreciar as pessoas que vão circulando. Curiosa esta diversidade. Tanta cor, tanto movimento, tantos sons. Pessoas sozinhas, acompanhadas, ou até em grandes grupos. Uns olham para tudo, mas outros não vêm nada. Há toda uma envolvência, um contexto a apreciar, mas há pessoas que insistem em não ver nada. Passam pelos sítios e o único ponto de contacto que estabelecem com esses sítios é o chão. Pisam a pedra da calçada sem a beijar com os pés. Pisam-na como quem desfolha um jornal de há duas semanas esquecido numa mesa de café. Sem intenção. Sem amor.
Outros envolvem-se com os prédios, com as floreiras, com a luz. Embebem-se de tudo. Por isso sorriem mais e parecem loucos. Loucos que tomaram más opções na vida. Mas eu, aqui sentada, não os vejo assim. Parecem-me mais felizes e cientes das suas opções. São mais emocionais e por isso mais livres. E ser livre é bom. Por exemplo, aquela senhora que agora passa com sacos de lojas conhecidas nas mãos, parece alheada. Só olha sobre a ponta do seu nariz, rigorosamente em frente, como se tivesse traçado uma linha recta. Não me parece feliz, nem livre, nem consciente.
Hoje, aquela senhora podia ser eu.
Acabaram-se as contemplações.
Levanto-me da mesa e dirijo-me rapidamente para casa-de-banho. Muito bem, temos fila de espera.
Plano B: Vou à do 1º andar. Cheia, sim, razoavelmente cheia. Vou ficar.
Pode passar!
Desculpe?
Pode passar.
Mas porquê? Mais ninguém quer ir?
Porque... está grávida!
Todas as mulheres que se encontravam na fila olharam num ápice para mim. E eu devo ter ficado com aquela cara de quem está grávida e não sabe, ou de quem está grávida mas não quer dizer ou pior, de quem NÃO está grávida mas parece.
Mas recordando-me de um ou outro episódio do género que já me tinha acontecido, pensei: Desta vez tira proveito da situação.
E passei delicadamente em frente de todas as senhoras que, entretanto, já me olhavam com um ar maternal e terno.
Fiz o que tinha ido ali fazer e saí da cabine.
Nem sei se por provocação se por instinto, sai com a camisola levantada enquanto acabava de apertar o último botão das calças.
O horror ficou-lhes estampado na cara: Onde raio tinha eu a "barriga"?
Na altura ri-me maquiavelicamente pensando: Cá se fazem cá se pagam.
Mas agora só me questiono sobre o que é que passou pelas cabeças daquelas almas para pensarem que eu estava efectivamente grávida?
Será que estou assim tão... grande?

A terceira, e não última, vez:
Filha preciso que faças um recado. Preciso de ir ao supermercado para comprar uns ovos, uma alface, queijo, fiambre e, já agora, traz-se um geladinho logo para o jantar.
É sempre a mesma coisa. Não devíamos comer doces, mãe. Não precisamos, percebes?
Não, não percebe.
Na realidade nem eu percebo. Quando sou confrontada com qualquer coisa com açúcar parece que perco o raciocínio. Deixo de ter visão periférica e só me foco no doce... doce... tão doce... Os bolos parecem maiores, os gelados mais doces, os chocolates mais quentes e aveludados quando conhecem a minha língua. Para mim comer é quase um acto erótico. Conjuga os odores, sabores, temperaturas, texturas e cores divinalmente sedutoras. Como com a boca, a língua e o toque.
De volta à realidade, deixo-me de falsos moralismos e de corredor em corredor, lá vamos nós varrendo as prateleiras do supermercado acabando por trazer mais 10 ou 15 coisas que não queríamos e não precisávamos.
Mais uma volta, confirmamos se temos tudo no carrinho e vamos directas à caixa para pagar.
Vejo uma caixa com apenas duas pessoas, vou ficar por aqui.
A senhora à nossa frente aconchega as suas compras sobre o tapete rolante para que nós possamos começar a colocar as nossas.
De súbito, olha para trás, olha-me a barriga com os olhos bem abertos, como se visse um monstro viscoso a sair-me das entranhas, abra a boca até ser possível ver-lhe o fígado e coloca as mãos na cabeça como que a segurar os seus cabelos desgrenhados para estes não saltarem da mesma e num desabafo desesperado diz: "Desculpe! Não vi que está grávida. Pode passar à frente".
Eu, saí do meu corpo. Experimentei por momentos a sensação de morte em vida e parecia flutuar por cima de mim mesma, observando-me de fora, em câmera lenta.
Depois, já de volta ao meu corpo físico, senti-me inchar e ficar cada vez maior. A cabeça ia explodir. Tinha a certeza.
NÃO. NÃO ESTOU GRÁVIDA!!!!!!!!
E a mulher, ainda com fôlego, respondeu:"Mas olhe que parece mesmo".
Bolas, mas a mulher não se cala.
Já chega não acha?
A mulher agarrou nos seus três sacos e pirou-se.
No final ainda tive de ouvir a minha mãe:
Se não fosses parva tínhamos passado à frente!

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