quarta-feira, 10 de setembro de 2008

História 2: "O mais fiel funcionário dos CTT"

O dia não tinha começado muito bem: acordei tarde, demorei no trânsito, e o telemóvel não parava de tocar. Ignorava os toques apesar de sentir o sistema nervoso a sufocar.
Não resisti e parei o carro. Na lista estavam algumas chamadas às quais não me apetecia responder, e uma outra muito importante. Telefonei e confirmei as minhas suspeitas: amanhã tenho de apresentar todo o material em stock, numa oportunidade única de fazer escoar os produtos que sobraram no fim da estação.
No entanto, percebi rapidamente que não tinha a colecção comigo.
Não há problema. Mais um telefonema e amanhã, por correio, estará cá tudo a tempo de fazer uma demonstração.
Contactei a responsável pela mercadoria e garantiu-me o seu envio no próprio dia. Agora seria só uma questão de esperar por amanhã.

8:00 - E o carteiro, nada.
9:00 - Nada.
9:30 - Não dá para esperar. Tenho de ir para o trabalho. Talvez na hora de almoço apareça.
13:00 - Regresso a casa para almoço. Já lá está o bendito postal para levantar a encomenda.

Fui rapidamente aos correios.
Uma das simpáticas funcionárias conseguiu atender-me sem nunca me ter olhado, mas na sua matemática competência, lá foi informando que a encomenda só estaria disponível no dia seguinte para ser levantada. Por momentos acho que eu própria deixei de a ver. Senti-me a cegar por um clarão.
Não está a perceber: p-r-e-c-i-s-o d-a e-n-c-o-m-e-n-d-a h-o-j-e!
Mais uma vez, sem levantar os olhos do balcão, confirmou a impossibilidade de aceder ao meu pedido. Mas... de repente... sem qualquer explicação... olha-me por cima dos óculos de lentes progressivas e num tom quase humano diz-me:
Só se quiser passar pelo armazém a ver se o chefe lhe dá ainda hoje a encomenda.
Subitamente a senhora parecia mais bonita, mais alta, esguia, e com um manto branco sobre a cabeça.
Não perdi mais tempo em contemplações e fui até ao armazém. Entrei pé-ante-pé, chamei por alguém, olhei para as centenas de cartas organizadas metodicamente por zonas, vi embrulhos... mas funcionários, nada.
Quando voltava pelo mesmo caminho ouvi alguém chamar. Um homem baixo, de bata, a olhar-me como se tivesse de óculos progressivos, mas sem os ter. Não me parecia o chefe da estação, mas só saberia encetando diálogo com ele:
O senhor é o chefe de armazém?
Não senhora.
Então e o chefe está?
Não senhora.
Então talvez me possa ajudar. Preciso de levantar ainda hoje uma encomenda, será possível?
Isso é com o chefe.
Mas disse-me que o chefe não está. Está cá alguém que o possa substituir?
Não senhora.
E a que horas chega o chefe?
Não sei.
Não sabe? Mas deve mais ou menos ter uma hora que seja hábito estar por aqui, ou não?
Não sei. Isso do horário é lá com ele.
Tudo bem mas, por exemplo, ainda virá hoje?
Oh minha senhora, eu não me meto na vida do chefe. Isso é lá com ele.
Mas não é uma questão de se meter na vida do chefe. Só estou a perguntar pela única pessoa que me pode ajudar, e para tal preciso saber quando a posso encontrar, não acha?
Já disse. O chefe tem a sua vida. Eu cá não me meto. Não gosto de falar da vida dos outros nem da do chefe. Isto é mesmo assim.
Obrigado.
E acabou por aqui este diálogo enriquecedor, que parecia ter demorado 138 horas.
Ora o homem não se mete na vida do chefe. Certo!

Só algum tempo depois, a frio, percebi que tinha tido o prazer e o privilégio de conhecer o mais zelador dos funcionários de todas as estações de CTT existentes no país.
Nunca cheguei a saber a função daquele homem, e não tive oportunidade de dizer ao seu chefe o quão fiel é este seu funcionário.

E apesar de a partir daquele momento tudo ter sido relativizado, a encomenda, o prazo, as vendas, os lucros..., insisti no mesmo dia em procurar pelo chefe de armazém, e encontrei.
Sem falsas simpatias, mas também sem precisar de fingir que tem óculos para mostrar quem manda, lá me entregou a encomenda sem levantar questões.

Obrigado senhor funcionário dos CTT por me fazer acreditar que ainda há gente que gosta dos patrões.

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